segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Passagem do Ano

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijará bocas, rasgará papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até Deus...

Recebe com simplicidade esse presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte
mas está vivo. Ainda uma vez, estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas,
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A vida escorre na boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-recptícia.


Carlos Drummond de Andrade



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme -- este operário das ruínas --
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos



sexta-feira, 15 de junho de 2012

A hora do cansaço

As coisas que amamos
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade

Começam a esmaecer quando nos cansamos
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário
de aspirar a resina do eterno
Já não pretendemos que sejam imperecíveis
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade

Do sonho de eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.


Carlos Drummond de Andrade



sábado, 9 de junho de 2012

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
     o que o vento levou
     entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na morte
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

Ferreira Gullar



segunda-feira, 28 de maio de 2012

O grito

Se ao menos esta dor servisse
se batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esse dor se visse
se saltasse fora da garganta (como um grito)
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedação de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer visível

doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos essa dor sangrasse

Manuel Bandeira




http://www.festimage.org/

domingo, 29 de abril de 2012

domingo, 15 de abril de 2012

Uma anarquista brasileira

Maria Lacerda

Ela estava certa
viva Maria Lacerda!

livre de escolas
livre de igrejas
livre de dogmas
livre de muletas!

direito ao prazer sexual
independência social

livre de escolas
livre de igrejas
livre de dogmas
livre de muletas!

direito ao prazer sexual
independência social

para ela o amor só seria livre quando as mulheres não fossem mais compelidas aos braços dos homens
por estarem submetidas a constrangimentos religiosos ou financeiros
seja pelo casamento,
pela prostituição,
ou pela escravidão do salário

ela estava certa
viva Maria Lacerda!
uma anarquista brasileira
viva Maria Lacerda!


Os Replicantes


De onde vem?

É dos dias?
É das horas?
Dos momentos,
das memórias?

É da noite?
Da madrugada?
Dos prazeres,
dos horrores?

É das dores?
Dos amores?
Dos sentidos,
dos sentimentos?

É dos saberes?
Das conquistas?
Das certezas,
das preguiças?

É das novidades?
Das vaidades?
Das verdades,
das amizades?

É dos pensamentos?
Dos lamentos?
Dos desprezos,
dos aconchegos?

É dos medos?
Dos segredos?
Dos suspiros,
dos calafrios?

É das voltas?
Das revoltas?
Dos relacionamentos,
dosacontecimentos?

Vem de onde?




Poesia e foto de Shel Almeida